Reconhecida como uma doença crônica pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade é vista ainda sob o viés estético, com pouca estrutura de cuidado dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). É o que afirma a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). Em entrevista ao portal LeoDias, o presidente da associação, dr. Fábio Trujilho, afirma que o cenário é alarmante e contrasta com o avanço da medicina no desenvolvimento de medicamentos eficazes e seguros contra a doença.
O termo ‘caneta emagrecedora’ leva muito pra um lado estético. Eu prefiro dizer ‘medicamentos para o tratamento da obesidade’, que é uma doença crônica que tem várias etiologias, ou seja, várias causas”, defendeu. “A obesidade pode levar a uma série de doenças e complicações como diabetes, hipertensão, a dificuldade de mobilidade, autoestima e até mesmo a diminuição da expectativa de vida; enquanto emagrecimento está mais relacionado ao lado estético”, completa.
Apesar do reconhecimento científico da obesidade como doença, não há qualquer medicamento incorporado à lista do Sistema Único de Saúde (SUS) para seu tratamento. Para Trujilho, essa omissão reflete uma visão equivocada do problema. “Você não tem nenhuma opção terapêutica de medicamento no SUS para o tratamento da obesidade. A Abeso enxerga que a obesidade no SUS não tem uma linha de cuidado com a pessoa que convive com a doença. Vai numa linha que cuide daquela pessoa, da alimentação, da parte psicológica. A gente vai continuar insistindo na instalação de uma linha de cuidado no SUS para o tratamento da obesidade, treinamento melhor para os profissionais de saúde; porque muitas vezes o próprio profissional de saúde tem um certo preconceito em relação à obesidade. E acho que esse cenário vai mudar a curto ou médio prazo”, diz.
Com a patente já vencida, a liraglutida, medicamento utilizado no tratamento do diabetes tipo 2, tem potencial para se tornar uma opção viável e acessível dentro dos sistemas públicos de saúde. Segundo Trujilho, esse reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) pode pressionar governos a incorporarem o medicamento em seus protocolos terapêuticos. Porém, ele reforça que, apesar da eficácia comprovada, a medicação não é uma solução isolada: deve estar inserida dentro de um plano de cuidado contínuo e multidisciplinar. “A Abeso também vai continuar trabalhando no ponto de vista de produzir documentos que comprovem que muitas pessoas vão precisar do uso do remédio; mas isso não quer dizer que seja uma bala de prata, que o remédio vai ser a solução de tudo”.
Enquanto isso, A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) recomendou que não sejam incluídos no serviço público de saúde medicamentos como Wegovy (semaglutida) e Saxenda (liraglutida). Para a comissão, o custo elevado foi uma das justificativas. Segundo Trujilho, é importante entender que a obesidade leva ao aumento de custo de outra série de demandas: “A longo prazo qual seria o cenário viável mais econômico? Isso depende muito da priorização dos pacientes que mais necessitam e estão em maior risco de complicações do tratamento da obesidade. Para isso, então precisa se estabelecer critérios, priorização que a Abeso está pronta para oferecer ajuda nesse sentido caso seja necessário”, pontua.
Medicamentos como liraglutida e semaglutida, aplicados por injeção em canetas, já demonstraram eficácia não apenas na perda de peso, mas também na prevenção de doenças cardiovasculares, renais e hepáticas. A liraglutida, cuja patente já expirou, é cotada para entrar na lista de medicamentos essenciais da OMS. Isso, segundo Trujilho, facilitará a pressão sobre governos nacionais para incorporá-la aos sistemas de saúde pública. “A gente não pode deixar de levar em consideração o custo, a condição que o país tem de tratar uma determinada doença, mas é importante lembrar que o custo da obesidade ele vai além da própria obesidade e do remédio. Se você não tratar a obesidade vai às vezes gastar muito mais dinheiro ou perder a pessoa que vai ter que se aposentar por uma invalidez porque teve um AVC, um derrame ou viver as consequências de um infarto. Então essa análise de custo tem que ser mais ampla”, pondera o presidente da associação.
A endocrinologista Marcela Pitaluga, membro do advocacy da Abeso e representante da causa no estado do Tocantins, celebra o avanço de iniciativas locais, como o recente encaminhamento do ofício que pode viabilizar a criação do Núcleo de Tratamento para Obesidade de Palmas (Nutop). “A maior estratégia está na união das instituições. A Abeso, uma instituição idônea e com caráter científico, a FESP, auxiliando a educação continuada da equipe multidisciplinar; e a Secretaria de Saúde de Palmas, com toda a logística social e política para realmente tornar isso uma realidade”, diz ela.
O núcleo será um serviço de referência para todo o Brasil e pensado para atender de forma integral quem convive com a obesidade, oferecendo acompanhamento contínuo e infraestrutura preparada para acolher pacientes ao longo do tratamento.
Para doutora Marcela, os principais desafios enfrentados pelos pacientes com obesidade são o estigma e a inacessibilidade à assistência médica. “É difícil entender como não há tratamento no SUS para uma doença crônica. Quando não há acesso ao tratamento de uma doença, no caso as canetas para tratamento da obesidade, estamos condicionando o paciente a viver com uma doença, impedimos ele prevenir outras doenças, ferimos constitucionalmente o direito à saúde, aumentamos as estatísticas epidemiológicas, agredimos o setor econômico e sobrecarregamos hospitais”.
A Conitec está analisando a possível inclusão da liraglutida no SUS para pacientes com obesidade grau II e III com comorbidades, o que seria um primeiro passo para a mudança. “Não seria algo aberto pra todo mundo, mas nós teríamos ali pelo menos um pequeno segmento que já seria bem atendido”, diz Trujilho.